A igreja primitiva guardava o domingo?

Antes de qualquer análise, e por se tratar de um tema polêmico, é importante afirmar que nenhum aspecto da Torá, incluindo a guarda do shabat, deve ser tratado como salvífico. 

A confiança no ensino apostólico reafirma, acima de tudo, que somos salvos pela obra do Messias que nos comprou com seu sangue e nos trouxe a reconciliação.

No entanto, o mesmo ensino apostólico apresenta que a Torá tem o propósito de nos tornar sábios para a salvação que há no Messias. 

Por isso, os apóstolos determinaram apenas quatro princípios que devem ser obrigatóriamente observados pelos crentes dentre os gentios (Atos 15:28-29), e a prática dos demais preceitos devem ser fruto de entendimento e fé (Atos 15:21 e Romanos 14).

No entanto, a teologia cristã tradicional afirma que o mandamento com relação ao shabat foi substituído pela guarda do domingo, que é frequentemente citado como "o sábado cristão". 

Para fundamentar este ensino, normalmente são citadas três passagens-chave do Novo Testamento: Atos 20:7; 1 Coríntios 16:2 e Apocalipse 1:10, como prova de que a observância do shabat foi abolida e substituída pelo domingo como o novo dia de guarda e culto. 

Porém, uma análise exegética detalhada e contextualizada, à luz do ambiente judaico dos primeiros cristãos, sugere uma conclusão significativamente diferente, atestando exatamente o oposto do pretendido.

Vamos a análise dos textos:

I. Atos 20:7 - A Reunião Noturna em Trôade e a Tradição da Havdalá.

​O texto descreve uma reunião: "No primeiro dia da semana, tendo-nos reunido para partir o pão, Paulo, que devia seguir viagem no dia seguinte, falava com eles, prolongando o discurso até a meia-noite."

​Pontos Críticos de Análise:

  1. ​​O Dia da Reunião (Mian Sabbaton): O texto em grego inicia com essa expressão "mia ton sabbaton" que pode ser literalmente traduzido como "no primeiro dos sábados", no entanto, os estudiosos entendem que este "sabbaton" é uma indicação da semana, o que de fato indica uma reunião no primeiro dia da semana (Domingo). Contudo, como a contagem judaica (que Paulo e a comunidade usavam) inicia o dia no pôr do sol, a indicação é de que a reunião iniciou-se exatamente no encerramento do shabat, e estendeu-se "até a meia-noite" e continuou até o amanhecer.  
  2.  ​O Ritual da Havdalá e o Fim do Shabat: Na tradição judaica, o Sábado é formalmente encerrado com a cerimônia da Havdalá (que significa "separação" ou "distinção").
    • A Havdalá é realizada quando três estrelas são visíveis no céu de sábado à noite. É um ritual que separa o Shabat (o sagrado) dos seis dias de trabalho (o profano ou comum).
    • Reunião de Paulo: O encontro de Paulo ocorreu exatamente neste momento limítrofe: logo após o Sábado ter terminado. O fato de a comunidade se reunir no início do "primeiro dia" (sábado à noite) era perfeitamente compatível com a prática judaica de iniciar as atividades laboriosas e o tempo profano (ou comum) da nova semana.
    • A informação de que "havia muitas luzes no lugar" também apontam para a celebração da havdalá.
    • Conclusão Reforçada: A reunião com a sua "partilha do pão" e longa pregação de Paulo destaca uma reunião tipicamente cristã, mas a sua colocação temporal (sábado à noite) é uma forte evidência de que aquela reunião aconteceu exatamente em razão da celebração do fim do shabat antes de iniciar atividades que culminariam em viagem e trabalho no dia seguinte.
  3. Natureza da Reunião: Não é um Dia de Descanso:
    • ​O Shabat é um dia de descanso (Shabath). Como a reunião culminaria com a viagem de Paulo ("que devia seguir viagem no dia seguinte"), a comunidade estava pronta para iniciar uma atividade laboriosa (viagem) assim que o Domingo amanhecesse. Isso confirma que o Domingo (e a noite anterior) era tido como um dia de trabalho, e não como o novo dia de descanso sagrado.

Conclusão Parcial:

​Atos 20:7 está a indicar que os discípulos talvez estivessem desenvolvendo uma tradição de usar a havdalá como uma reunião especial para o "partir do pão", uma possível alusão à santa ceia, provavelmente em memória ao momento da ressurreição de Yeshua, que, segundo os evangelhos, se deu exatamente neste momento.

Porém, ao invés de propor uma substituição da observância do shabat pelo domingo, a evidência é justamente oposta, pois ao que o texto indica, estavam sim celebrando o rito de encerramento do shabat, o que indica a guarda do shabat.


II. 1 Coríntios 16:2 – A Coleta de Ofertas

Neste texto Paulo instrui: "No primeiro dia da semana, cada um de vós separe o que puder, de acordo com a sua renda, e a guarde para que não se façam coletas quando eu chegar."

Muitos teólogos citam este texto para afirmar que haviam reuniões no primeiro dia da semana, inclusive com coletas.

No entanto o texto aponta para uma realidade um tanto quanto diferente. O comando é para "ponha junto a si mesmo, entesourando" (παρ’ ἑαυτῷ τιθέτω θησαυρίζων). Esta é uma instrução para um ato individual de separação financeira em casa e não, necessariamente, a realização de uma coleta pública durante um culto.

Além disse, a orientação parece preservar um certo respeito ao Shabat. A interpretação mais lógica para ordenar a separação no primeiro dia é justamente evitar que a atividade ocorra no Sábado (Shabat). 

O manuseio e a contagem de dinheiro para transações ou grandes coletas eram proibidos pelas tradições judaicas do Shabat (melakhah).

Ao instruir que o valor fosse separado no Domingo, Paulo garantia que as finanças fossem organizadas no dia de início da semana de trabalho, respeitando o descanso sabático dos crentes judeus e gentios que viviam sob forte influência judaica.

Outro ponto é que objetivo de Paulo era puramente logístico: "para que não se façam coletas quando eu chegar.", e não litúrgico. O foco é na doação para um fim específico, a ajuda aos pobres de Jerusalém, e não na santidade de um dia.

Conclusão Parcial:

1 Coríntios 16:2 mostra uma instrução para como organizar uma coleta específica, mas parece indicar uma intenção de preservar a integridade do shabat como um dia livre de transações e atividades financeiras.

III. Apocalipse 1:10 – O "Dia do Senhor"

João relata: "Achei-me em Espírito no dia do Senhor..." (ἐγενόμην ἐν πνεύματι ἐν τῇ κυριακῇ ἡμέρᾳ).

A expressão grega usada é κυριακῇ ἡμέρᾳ (kyriakē hēméra), ou "Dia Senhorial" (adjetivo). Esta é a única ocorrência no NT.

Há duas interpretações comuns a este texto, uma de que João está se referindo ao Dia do Senhor profético, o dia da segunda vinda de Yeshua, assim como os profetas anunciavam, e outra de que João teve a visão no dia do Senhor, o dia santificado para culto ao Senhor.

A referência bíblica padrão para o grande dia do juízo final e da vinda do Messias é "ἡμέρᾳ τοῦ Κυρίου" (Hēméra toû Kyríou), que usa o substantivo possessivo genitivo ("Dia do Senhor"). João usa deliberadamente uma forma diferente, menos comum nas profecias escatológicas.

Assim, podemos considerar que João estivesse aqui referindo-se de fato ao dia semanal, porém sem identificar qual seria este dia, se o primeiro ou o sétimo, embora a tradição posterior aos apóstolos utilizem esta mesma expressão para referir-se explicitamente ao domingo.

Mas, mesmo que essa seja a "melhor" interpretação exegética, João estaria apenas datando a visão, e não estabelecendo uma substituição do shabat pelo domingo.

Ainda que a tradição associe a expressão ao Domingo, Apocalipse 1:10 apenas nomeia o dia ou o tema em que a visão ocorreu, mas não o estabelece como um mandamento ou dia de guarda em substituição ao Shabat. Sua ambiguidade impede que seja usado como prova de uma mudança doutrinária.

A Continuidade do Shabat

A análise exegética dos três textos demonstra que a afirmação da teologia tradicional é insustentável baseada apenas nessas passagens.

Os textos de Atos 20:7 e 1 Coríntios 16:2 descrevem reuniões e atividades logísticas no primeiro dia da semana que, em seu contexto judaico, reforçam, e não contradizem, a observância do shabat como dia de descanso e abstenção de trabalho e negócios.

O texto de Apocalipse 1:10 é linguisticamente ambíguo e, na melhor das hipóteses, apenas registra a data ou tema da visão, sem estabelecer uma doutrina de substituição.

Em suma, o Novo Testamento atesta uma prática de culto e comunhão no primeiro dia da semana, mas no contexto do encerramento do shabat e celebração da havdalá, com possível enfoque na celebração da ceia em memória à ressurreição de Yeshua, mas não oferece nenhum mandamento explícito para a transferência do dia de descanso obrigatório do shabat para o domingo.

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