O veneno da Religiosidade!



A cidade de Jerusalém no primeiro século da era cristã era uma cidade especialmente religiosa. Era o coração do judaísmo e abrigava o Templo, o único lugar onde se deveria fazer sacrifícios e ofertas à Deus. Também era no Templo onde estava o principal organismo político da Judeia, chamado de sinédrio. Este mesmo sinédrio era composto por sacerdotes e religiosos, e tinham a incumbência de governar o povo de acordo com as leis dadas por Moisés.
Jerusalém era uma cidade que exalava religiosidade em todos os seus aspectos. O dia a dia de um cidadão em Jerusalém era em volta de seu Templo. O comercio também crescia em torno da religião.
Podemos perceber pelo que está registrado nos evangelhos que em Jerusalém as pessoas gastavam seus dias em orações, jejuns e discussões teológicas intermináveis.
Foi neste contexto em que vemos aproximar-se de Jesus os discípulos de João, o batista e perguntaram:
“Então, chegaram ao pé dele os discípulos de João, dizendo: Por que jejuamos nós e os fariseus muitas vezes, e os teus discípulos não jejuam?” Mateus 9:14
João batista foi um profeta de Deus enviado para iniciar a pregação do arrependimento, preparando assim os corações e mentes das pessoas para receberem a mensagem de Jesus, e o reconhecerem como seu messias. João arrebanhou muitos discípulos, e chegaram a perguntar se não seria ele mesmo o messias. Mas João sempre afirmou que seu ministério era preparar o caminho para o messias, e o próprio João testificou ser Jesus este messias aguardado quando disse:
“No dia seguinte João viu a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.” João 1:29
Logo após Jesus iniciar seu ministério, e tendo já cumprido sua missão, João foi aprisionado por Herodes. João havia repreendido Herodes publicamente, pois ele havia se casado com a esposa de seu irmão. Herodes como era governador da província o prendeu, e o manteve no cárcere. Somente após a pressão de Herodias, a mulher em questão, Herodes ordenou a execução de João. No entanto, neste momento em que os discípulos de João interrogaram a Jesus, João já estava preso.
Tendo perdido o seu mestre, pois estava preso, e sabendo que João havia testificado a respeito de Jesus, os discípulos de João passaram a acompanhar mais de perto o ministério de Jesus, e fizeram uma constatação: os discípulos de Jesus, ao contrário deles e dos fariseus, não eram homens que jejuavam.
Ora o jejum era uma prática importante na religião judaica. Os fariseus jejuavam duas vezes por semana, e o jejum sempre esteve ligado à imagem de um judeu piedoso dentro do contexto religioso daquela época.
Jejuar duas vezes por semana, ir ao templo orar três vezes ao dia, dar esmolas sempre que necessário, sacrificar e ofertar no templo regularmente, essas eram as características de um judeu religioso.
A constatação que os discípulos de João fizeram foi que os discípulos de Jesus, na contramão do estereotipo religioso da época, não jejuavam. Era como se os discípulos do Cordeiro de Deus não fossem mais piedosos do que os demais religiosos da época, pelo contrário!
Vejamos que a mesma percepção, os fariseus e demais religiosos da época, tiveram de Jesus, quando o mesmo Jesus afirmou:
“Porque veio João o Batista, que não comia pão nem bebia vinho, e dizeis: Tem demônio; veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizeis: Eis aí um homem comilão e bebedor de vinho, amigo dos publicanos e pecadores.” Lucas 7:33-34
Fato é que tanto Jesus como seus discípulos não condiziam com o estereotipo religioso da época, apesar de os evangelhos apresentarem Jesus frequentemente em oração, ele sempre fazia isso quando se retirava da multidão, e estando só ou com seus discípulos apenas, nos montes, orava. E apesar de termos o registro de Jesus ter jejuado por quarenta dias durante a tentação no deserto, os evangelhos não registraram outro momento em que Jesus jejuou. Assim concluímos que Jesus e os discípulos tinham sim uma vida piedosa e de oração, mas essa piedade fazia parte da vida íntima deles, e não era exteriorizada.
Jesus ensinou justamente isso no chamado sermão do monte, dizendo:
“E, quando orares, não sejas como os hipócritas; pois se comprazem em orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente.” Mateus 6:5-6
“E, quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram os seus rostos, para que aos homens pareça que jejuam. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. Tu, porém, quando jejuares, unge a tua cabeça, e lava o teu rosto, para não pareceres aos homens que jejuas, mas a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente.” Mateus 6:16-18
Jesus estava ensinando, no sermão do monte, que o que fazemos para Deus deve ser feito para Deus e não para ser apresentado à outras pessoas. Tanto a oração como o jejum deveria ser realizada de forma particular e secreta.
No entanto quando os discípulos de João o questionaram o porquê de seus discípulos não jejuarem assim como eles e os fariseus, Jesus respondeu a essa pergunta com duas afirmações:
“E disse-lhes Jesus: Podem porventura andar tristes os filhos das bodas, enquanto o esposo está com eles? Dias, porém, virão, em que lhes será tirado o esposo, e então jejuarão.
Ninguém deita remendo de pano novo em roupa velha, porque semelhante remendo rompe a roupa, e faz-se maior a rotura. Nem se deita vinho novo em odres velhos; aliás rompem-se os odres, e entorna-se o vinho, e os odres estragam-se; mas deita-se vinho novo em odres novos, e assim ambos se conservam.” Mateus 9:15-17
Inicialmente Jesus responde sobre a questão unicamente do jejum, afirmando que os discípulos não poderiam jejuar enquanto Cristo, o noivo, estivesse com eles, e que viria dias em que o noivo seria tirado, então nesses dias jejuariam.
Sobre a questão particular do jejum, Jesus colocou o jejum dentro do contexto em que ele realmente se propõe. O jejum bíblico sempre esteve ligado à consternação. Todos os exemplos que temos na bíblia liga o jejum a algum acontecimento que provocou tristeza, e levou alguém a jejuar e buscar a face de Deus.
Assim o jejum deve ser motivado por um sentimento de tristeza, e extrema necessidade de buscar a Deus até que haja uma resposta.
Veja por exemplo como jejuou Davi por seu filho, quando o profeta o repreendeu pelo seu pecado, e disse que seu filho não viveria:
“E buscou Davi a Deus pela criança; e jejuou Davi, e entrou, e passou a noite prostrado sobre a terra. Então os anciãos da sua casa se levantaram e foram a ele, para o levantar da terra; porém ele não quis, e não comeu pão com eles.
E sucedeu que ao sétimo dia morreu a criança; e temiam os servos de Davi dizer-lhe que a criança estava morta, porque diziam: Eis que, sendo a criança ainda viva, lhe falávamos, porém não dava ouvidos à nossa voz; como, pois, lhe diremos que a criança está morta? Porque mais lhe afligiria. Viu, porém, Davi que seus servos falavam baixo, e entendeu Davi que a criança estava morta, pelo que disse Davi a seus servos: Está morta a criança? E eles disseram: Está morta.
Então Davi se levantou da terra, e se lavou, e se ungiu, e mudou de roupas, e entrou na casa do SENHOR, e adorou. Então foi à sua casa, e pediu pão; e lhe puseram pão, e comeu.” 2 Samuel 12:16-20
Perceba que Davi orou e jejuou com seu corpo jogado ao pó, rogando pela vida de seu filho, porém no instante em que ficou sabendo que a criança estava morta, levantou-se, lavou-se, ungiu-se, adorou a Deus e alimentou-se.
Davi estava pedindo a Deus que não matasse seu filho, mas Deus respondeu negativamente a Davi, levando a criança, e Davi sujeitou-se à soberania de Deus, e o adorou. Mas enquanto estava pedindo a Deus, estava com o coração amargurado e buscando a Deus, por isso o jejum.
Assim como no caso de Davi, todos os demais jejuns que observamos na bíblia trazem uma situação de tristeza, ou apreensão, e uma necessidade urgente de uma resposta divina. No caso dos discípulos de Jesus, eles não poderiam estar tristes na presença do Deus encarnado, e nem necessitavam de uma resposta urgente de Deus, pois o próprio Deus estava com eles em carne.
O que os discípulos de Jesus tinham a fazer era apenas ouvir atentamente seu mestre e desfrutar da gloriosa presença do Mestre. O jejum, portanto não se aplicaria a eles. E sabemos pelo livro de Atos, que quando Jesus subiu aos céus, os discípulos tiveram a necessidade de jejuar.
Mas a segunda afirmação de Jesus para responder aos discípulos de João é, a meu ver, a mais interessante e aplicável para nós.
“Ninguém deita remendo de pano novo em roupa velha, porque semelhante remendo rompe a roupa, e faz-se maior a rotura. Nem se deita vinho novo em odres velhos; aliás rompem-se os odres, e entorna-se o vinho, e os odres estragam-se; mas deita-se vinho novo em odres novos, e assim ambos se conservam.”
Vejamos que Jesus fez duas comparações, roupa velha remendada com tecido novo, e odres velhos recebendo vinho novo. Jesus estava ensinando para os discípulos de João que é impossível as práticas piedosas mudarem o interior do homem.
Orar a Deus e jejuar a Ele, são na verdade práticas boas, desde que realizadas no contexto correto, mas é totalmente ineficaz para a transformação do caráter humano. Assim quando o velho homem, cheio de pecado, e de natureza corrompida, tenta usar dessas práticas como panos novos em roupas velhas, o que acontece é uma religiosidade falsa, que produz um estrago ainda maior. Da mesma forma quando odres velhos, corrompidos pela fermentação do pecado, se recebem o vinho novo da sã doutrina do evangelho, o mesmo não o pode suportar, os odres velhos se rompem.
Este é o efeito do veneno da religiosidade, pois quando nos tornamos religiosos buscamos em práticas aparentemente piedosas, a forma de convencer a outros e a nós mesmos que temos alguma dignidade diante de Deus. O homem religioso realiza práticas piedosas para ser aceito por Deus, mas isso não transforma o seu caráter mau.
O que Jesus ensina aqui é que a transformação do caráter humano não pode ser feito de fora para dentro, mas de dentro para fora. Aqueles discípulos de João haviam sido os primeiros a ouvirem a mensagem do arrependimento, como o preparativo para receber e reconhecer o Messias, e eles mesmos estavam ignorando a necessidade de uma vida de arrependimento, para que então as boas práticas não se tornassem em remendo de pano novo em roupas velhas.
Assim percebemos que a essência da vida cristã não são horas de oração e jejuns, não são as quantidades de vezes que subimos ao templo para adorar, nem o quanto de nossos recursos nós dedicamos aos pobres e ao reino de Deus. Mas a essência da vida cristã é o coração arrependido e quebrantado diante da presença de Deus. E então, quebrantados e arrependidos diante de nosso Cristo, recebemos e reconhecemos nosso Senhor e Salvador, e Ele, através da operação maravilhosa do Espírito Santo de Deus, nos transforma dia após dia em novas criaturas, não apenas remendo de pano novo, mas novas vestes, e novos vasos para honra de nosso Senhor. E por consequência desta transformação genuína do caráter, que podemos ter uma vida sinceramente piedosa diante de Deus.


Comentários

  1. Muito bom este estudo.
    É por isso que vemos muitos "crentes "envergonhando no nome de Jesus, porque não passam de religioso, não nasceram de novo, não são crentes verdadeiros.

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