E como os apóstolos lidaram com o legalismo?


 

O legalismo foi o tema central do único concílio apostólico, e também único canônico, que está registrado em Atos 15.

 

Mas para compreendermos plenamente o que foi estabelecido ali, é necessário contextualizarmos o perfil da igreja nas primeiras décadas de sua existência.

 

Naquele momento de Atos 15, haviam quatro personagens principais envolvidos:

 

O primeiro destes personagens era o Judeu, que era aquele descendente de Abraão que vivia na aliança estabelecida entre Adonai e Israel no monte Sinai. O Judeu era circuncidado ao oitavo dia após o nascimento, como sinal da aliança estabelecida entre Adoani e o patriarca Abraão.

 

Desde então o Judeu crescia e se desenvolvia em um ambiente onde a Torá era o centro cultural, filosófico e religioso. A Torá era lida e estudada todos os sábados nas sinagogas, de forma que cada judeu estudava a Torá inteira a cada ano.

 

Aos 13 anos de idade o Judeu fazia a primeira leitura pública da Torá, em hebraico, na sinagoga de sua comunidade.

 

Ao reconhecer que Jesus é o Messias de Israel, prometido na Torá e nos profetas, e depositando nEle a Fé, o Judeu se tornava discípulo de Jesus, formando a Kahal (comunidade) de Jesus.

 

O segundo personagem era o Prosélito. Este não era um judeu de nascimento, mas um indivíduo que nascera gentio (não judeu), e em certo momento da vida havia se convertido ao judaísmo.

 

Desde o inicio de sua conversão o Prosélito era acompanhado de perto por um Judeu, que o ensinava os preceitos da Torá e a tradição dos anciãos (hoje compilada na Mishnah e no Talmude), e após aproximadamente um ano de acompanhamento o Prosélito era encaminhado para o batismo.

 

Em sua cerimônia de batismo, o Prosélito JURAVA guardar todos os preceitos da Torá, e então era imerso na mikve (batistério judaico).  Uma vez batizado o mesmo era circuncidado, e então admitido na comunidade judaica como se fosse um natural.

 

Enquanto o Judeu era circuncidado ao oitavo dia, sem necessidade de juramento algum, o Prosélito era circuncidado já na idade adulta, e somente após realizar o juramento de observar toda a Torá.

 

O livro de Atos registra que muitos prosélitos creram em Jesus, e adentraram na comunidade dos discípulos de Jesus. Talvez o mais importante deles tenha sido o evangelista Lucas.

 

O terceiro personagem que temos era o Temente, este grupo era também de gentios que freqüentavam as sinagogas, participavam de algumas festividades e cerimoniais, no entanto não chegavam a se converter ao judaísmo.

 

Apesar de se manterem gentios, eram pessoas que adoravam ao Deus de Israel, praticavam muitos dos preceitos da Torá e estudavam a Torá com os judeus nas sinagogas.

 

O Temente mais conhecido do Novo Testamento foi o centurião Cornélio, o primeiro não judeu a ser cheio do Espírito Santo em Atos capítulo 10.

 

O nosso último personagem era o Gentio. Este último era totalmente estranho ao contexto judaico. Eram pagãos, adoravam muitos deuses, não conheciam a Torá, nem o Deus de Israel, e viviam segundo as leis naturais e segundo o próprio entendimento.

 

Em certo momento, ao conhecer sobre a ressurreição de Jesus, o Gentio se convertia ao Deus de Israel, crendo em Jesus, entrando na comunidade dos discípulos, mas ainda sem ter muito contato com a cultura de Jesus e dos apóstolos: a Torá.

 

Até Atos 10 vamos ver que a Igreja (comunidade dos discípulos de Jesus) era composta exclusivamente por Judeus e Prosélitos.

 

Após Atos 10, quando o centurião Cornélio foi cheio do Espírito Santo, sem ser um Judeu ou um Prosélito, as igrejas na Antioquia passaram a anunciar o Evangelho também aos gentios, e muitos Gentios e Tementes creram em Jesus.

 

A conversão de Gentios e Tementes foi uma noticia maravilhosa, pois era cumprimento profético. Mas ao mesmo tempo levantou uma questão importante. Como que Judeus e Prosélitos, que conheciam e praticavam os princípios da Torá, entrariam em comunhão com Tementes e Gentios que mal conheciam a Torá, e tinham algumas práticas estranhas à Torá?

 

É neste cenário que encontramos o registro de que:

 

"Então alguns que tinham descido da Judéia ensinavam assim os irmãos: Se não vos circuncidardes conforme o uso de Moisés, não podeis salvar-vos." Atos 15:1

 

Podemos entender que a preocupação destes fariseus crentes em Jesus era legítima, porém, motivados por uma preocupação legítima, tomaram uma decisão legalista, e pior, sem consultar os apóstolos, e muito menos ao Espírito Santo.

 

A legitimidade da preocupação fica caracterizada pela discrepância entre o bojo cultural e teológico dos gentios e o bojo cultural e teológico dos judeus.

 

Mas a decisão legalista fica caracterizada pela proposta de obrigar os gentios a se tornarem judeus para que pudessem alcançar a Salvação, ou seja, a imposição a obediência à Torá, para que os gentios pudessem ser considerados salvos.

 

A questão que estava sendo tratada era: quais os requisitos necessários para que os Gentios e Tementes pudessem ser admitidos à comunidade dos discípulos de Jesus.

 

Assim entramos em Atos 15, onde os apóstolos se reuniram e debateram sobre este tema, e é muito importante atentarmos para as disposições de cada um dos locutores daquele concílio, para entendermos a sua conclusão.

 

Primeiro temos Paulo e Barnabé contanto como que Deus tinha-os usados para operar sinais e maravilhas entre os gentios, e como muitos estavam se convertendo à Deus.

 

Neste momento, alguns do grupo que Paulo denominou como "os da circuncisão" (pois eram estes que queriam circuncidar os gentios), afirmaram que era necessário circuncidá-los e mandar-lhes guardar a Torá.

 

Havendo grande contenda, Pedro levanta-se e relata sobre a sua experiência pessoal com a conversão de Cornélio, como que o Espírito Santo havia descido sobre aqueles gentios enquanto ele anunciava a Jesus.

 

Adonai, que conhece os corações, não fez diferença entre gentios e judeus, purificando aqueles gentios assim como os judeus foram purificados: pela fé em Jesus. E exorta:

 

"Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar? Mas cremos que seremos salvos pela graça do Senhor Jesus Cristo, como eles também." Atos 15:10,11

 

Pedro, como um bom judeu, sabia que a Torá não fora dada para remissão, pelo contrário, a Torá revela e evidencia o pecado. O propósito da Torá nunca foi redimir, mas mostrar a JUSTIÇA de Adonai. A própria Torá aponta que a remissão é pela GRAÇA e MISERICÓRDIA de Deus, manifestada a nós por meio de Jesus.

 

Nas palavras de Pedro, obrigar os gentios a obedecer a Torá para se sentirem salvos é TENTAR A ADONAI, pois as nossas obras não podem justificar nossos pecados, e nem mesmo os judeus obedeciam a Torá com este propósito.

 

Então Tiago dá a sua contribuição, tomando como ponto de partida o depoimento de Pedro, e cita o profeta Amós, onde lemos:

 

"Naquele dia tornarei a levantar o tabernáculo caído de Davi, e repararei as suas brechas, e tornarei a levantar as suas ruínas, e o edificarei como nos dias da antigüidade; para que possuam o restante de Edom, e todos os gentios que são chamados pelo meu nome, diz o Senhor, que faz essas coisas." Amós 9:11,12

 

Tiago cita uma profecia concernente à restauração do reino de Israel. E esta profecia fala sobre a salvação dos Gentios, que são chamados pelo nome de Adonai. Ou seja, a restauração do reino de Israel irá incluir judeus e gentios que servem ao Deus de Israel.

 

Baseado neste entendimento, de que Adonai também tinha um povo a ser resgatado dentre os gentios, antes de restaurar o reino de Israel, Tiago conclui:

 

"Por isso julgo que não se deve perturbar aqueles, dentre os gentios, que se convertem a Deus. Mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos, da fornicação, do que é sufocado e do sangue. Porque Moisés, desde os tempos antigos, tem em cada cidade quem o pregue, e cada sábado é lido nas sinagogas." Atos 15:19-21

 

O que Tiago está propondo é que não haja sobre os gentios qualquer imposição, a não ser "que se abstenham das contaminações dos ídolos, da fornicação, do que é sufocado e do sangue".

 

Em outras palavras, segundo Tiago, estes princípios da Torá são inegociáveis, e devem ser observados por todos: judeus e gentios.

 

Segundo o concílio de Jerusalém, aquele que é discípulo de Jesus, principalmente os gentios, devem fugir da idolatria, e de tudo relacionado à idolatria, inclusive carnes consagradas a ídolos e qualquer prática ligada à idolatria.

 

Também deve fugir da prostituição e de todos os pecados relacionados à prostituição, como a lascívia, pornografia, adultério e etc.

 

Da mesma forma não deve comer carnes sufocadas, ou seja, animais que quando mortos, não tiveram o seu sangue derramado, como ordena a Torá.

 

E também deve abster-se tanto de comer o sangue, como de derramar sangue inocente, seja pelo assassinato ou entregar sangue inocente à morte por outrem.

 

Mas não somente isso, Tiago ainda diz que "Moisés, desde os tempos antigos, tem em cada cidade quem o pregue, e cada sábado é lido nas sinagogas."

 

Ou seja, não haveria da parte dos apóstolos qualquer imposição aos gentios no tocante à observância dos demais preceitos da Torá, mas haveria a liberdade para que os gentios aprendessem a Torá, e então com fé, praticassem aquilo que aprendessem, motivados pela Fé em Deus e em sua Palavra.

 

Conforme o gentio, discípulo de Jesus, fosse crescendo no conhecimento da Torá, teria a liberdade de aplicar os princípios da Torá em sua vida.

 

E em nenhum momento estes preceitos seriam utilizados para questionar a salvação de quem quer que fosse, pois como Pedro mesmo havia dito, mesmo os judeus confiavam na Graça de Jesus Cristo para a remissão de seus pecados, e não nas suas obras.

 

Os apóstolos, conduzidos pelo Espírito Santo, combateram o legalismo não depreciando a Torá, mas colocando a Torá no seu devido contexto. A Torá foi dada para que dela obtivéssemos sabedoria:

 

"Guardai-os pois, e cumpri-os, porque isso será a vossa SABEDORIA e o vosso ENTENDIMENTO perante os olhos dos povos, que ouvirão todos estes estatutos, e dirão: Este grande povo é nação sábia e entendida." Deuteronômio 4:6

 

E é essa sabedoria que produz em nós a vida:

 

"É árvore de vida para os que dela tomam, e são bem-aventurados todos os que a retêm." Provérbios 3:18

 

Por isso, para nós que somos gentios, e discípulos de Jesus, a Torá tem grande importância, não para uma prática legalista e religiosa, mas para conhecermos a Adonai, conhecer seus caminhos e sua vontade. Afinal a Nova Aliança tem por objetivo escrever a Torá em nosso coração e em nosso entendimento:

 

"Mas esta é a aliança que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei a minha Torá no seu interior, e a escreverei no seu coração; e eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo." Jeremias 31:33

 

Que o Eterno nos capacite, por meio de seu Espírito, a apreendermos a sabedoria de sua Torá, e nos mantermos livres de todo o legalismo.

 

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